domingo, 17 de abril de 2011

A CELEBRAÇÃO CRISTÃ DA PÁSCOA

A CELEBRAÇÃO CRISTÃ DA PÁSCOA
O sentido cristão da Quaresma e da Páscoa

1. Um pouco de história...

Importância
            “É consensual, entre os historiadores, o reconhecimento em Jesus de um judeu nascido em terra de Israel durante o reinado de Herodes, o Grande, pouco antes do ano 750 da fundação de Roma, pregador de talento rodeado de alguns discípulos, crucificado em Jerusalém com pouco mais de trinta anos de idade, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia”[1], no tempo do imperador Tibério. Ninguém voltaria a falar de Jesus de Nazaré se, no terceiro dia após a sua morte na cruz, alguns dos que o conheceram e acompanharam não tivessem tido a convicção de que ele se reerguera de entre os mortos e não estivessem convencidos de o terem visto vivo. Foram estes que se lançaram ao caminho, anunciando a sua convicção e fazendo novos discípulos. Assim nasceu o cristianismo.
            A ressurreição de Jesus crucificado aparece assim como o fundamento da fé cristã. É a partir da certeza de que Jesus, morto numa cruz, está vivo, que se faz a releitura da sua vida: para os evangelistas, o binómio morte-ressurreição não é o final de uma história, mas o seu centro, a partir do qual tudo ganha sentido. “O Novo Testamento está inteiramente orientado para a cruz e a ressurreição”[2]. Por isso, os próprios evangelhos nascem da experiência pascal, crescem para trás:
  “O evangelho cresceu para trás: o final esteve ali antes que se tivesse pensado no princípio. Recordavam-se antes as últimas coisas. A primeira pregação, as tradições mais antigas, estavam centradas no tema do sofrimento e da glória do Messias. Foi imediatamente a seguir, ao crescer o evangelho, que se prolongou, por assim dizer, a história da paixão de Jesus, com lembranças de factos da sua vida. O ponto em que o evangelho começa alcançou-se retrospectivamente, partindo do período da sua morte até ao seu baptismo; a seguir, até ao seu nascimento; e por fim (para começar já mesmo pelo princípio) até ao Verbo que estava com Deus”[3].

            O Mistério Pascal é, pois, a chave teológica que nos permite aproximarmo-nos de Jesus. É também a chave que nos permite compreender todo o culto cristão, logo também a Liturgia. “Houve um período na vida da Igreja em que a Páscoa era tudo, por assim dizer, não só porque comemorava, somente ela e sem concorrência de nenhuma outra festa, toda a história da salvação, da criação à parusia, mas também porque era o lugar em que se elaboraram certos componentes essenciais da vida da comunidade, tais como a liturgia, a exegese tipológica, a catequese, a teologia e mesmo o cânon das Escrituras”[4].
Por isso, dizem as Normas sobre o Ano Litúrgico: “O sagrado Tríduo da Paixão e Ressurreição do Senhor é o ponto culminante de todo o ano litúrgico, porque a obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus foi realizada por Cristo especialmente no seu mistério pascal, pelo qual, morrendo destruiu a nossa morte e ressuscitando restaurou a vida. A proeminência que na semana tem o Domingo, tem-na no ano litúrgico a solenidade da Páscoa” (n.º 18).

            Do período apostólico ao século IV
            A Igreja primitiva celebrava a Páscoa cada semana, na Eucaristia dominical. Junto a essa Páscoa semanal (Domingo), vai desenvolver-se uma outra celebração: a Páscoa anual, que está na origem de todo o Ano Litúrgico. Na tradição ocidental, a Páscoa anual não é senão a solenização da Páscoa semanal no Domingo seguinte à Páscoa Judaica. De qualquer modo, o desenvolvimento de todo o Ano Litúrgico a partir deste núcleo, que é a celebração anual da Páscoa, põe em evidência que todo ele é percorrido por uma profunda dimensão pascal.
            Não é fácil determinar a data em que a Igreja começou a celebrar a Páscoa, uma vez por ano, assim como não é fácil afirmar se essa celebração começou em todos as Igrejas na mesma época, ou se se desenvolveu a partir de comunidades judeo-cristãs.
            O primeiro testemunho claro sobre a observância de uma Páscoa anual aparece no século II: trata-se da Epistula Apostolorum (Carta dos Apóstolos). A Carta dos Apóstolos, apresentada como um colóquio de Jesus com os seus Apóstolos depois da ressurreição, foi escrita na Ásia Menor ou no Egipto, entre os anos 140 e 170. Nesse texto, a Páscoa seria provavelmente celebrada de 14 para 15 de Nisan como memorial da morte e ressurreição do Senhor. A celebração consistia numa vigília que durava toda a noite e terminava de madrugada com a Eucaristia.

            A data da Páscoa. A questão da data da Páscoa, no século II, não era meramente um problema de datas, mas de modos diferentes de conceber a própria Páscoa. Na Ásia Menor, os cristãos seguiam a cronologia de João e celebravam a Páscoa no dia 14 de Nisan, por ser a data da morte do Senhor, independentemente do dia da semana em que caísse. Toda a celebração estava centrada na Paixão, mas o jejum terminava no final desse dia com a Eucaristia, a celebração da ressurreição. No Ocidente, a Páscoa celebrava-se no Domingo seguinte ao 14 de Nisan judaico. Deste modo, mantinham o jejum durante o sábado, enquanto o Senhor estava no sepulcro, e celebravam a Eucaristia na madrugada do Domingo, o dia da ressurreição. Acentuava-se sobretudo a ressurreição do Senhor, mais do que a sua paixão e morte. Esta divergência deu origem, no século II, a uma violenta polémica entre os partidários da tradição quartodecimana e os partidários da tradição ocidental. Dessa polémica nos dá conta Eusébio de Cesareia (História Eclesiástica, V, 23-25: AL 1243-1246). O Papa Vítor não chegou a declarar a excomunhão e, no século III, a celebração da Páscoa anual ao Domingo tornara-se já prática geral.

            O sentido da Páscoa e o seu conteúdo.
            Os Padres da Igreja interpretaram a Páscoa cristã, a partir dos textos do NT, de dois modos distintos:
a)   Páscoa-paixão: “Páscoa”, segundo alguns Padres, significaria “paixão” (a partir de uma falsa etimologia da palavra); daí que a Páscoa cristã fosse interpretada como celebração da paixão e morte de Jesus, enquanto acontecimento salvífico; o protagonista é Cristo.
b)   Páscoa-passagem: “Páscoa”, segundo outros Padres, significaria “passagem”; e sobretudo a escola alexandrina, na sequência de Orígenes, interpretava a Páscoa cristã como passagem do “homem velho” ao “homem novo”; o protagonista seria então o homem.
Foi posteriormente S. Agostinho a fazer a síntese entre as duas interpretações, sublinhando que se trata sobretudo de duas dimensões do mesmo mistério, e não duas interpretações que se excluíssem mutuamente. “Páscoa é a passagem de Jesus deste mundo para o Pai; passagem que se faz pela paixão e morte de Jesus”. Tendo Cristo morrido e ressuscitado para nossa salvação, também nós passamos da morte à vida, na medida em que participamos do seu Mistério Pascal. Tomemos o exemplo de dois textos significativos do bispo de Hipona.
Pessoas mais atentas e mais doutas descobriram que Páscoa é uma palavra hebraica, que não significa paixão, mas passagem. O Senhor passou, pela paixão, da morte à vida, e fez-Se caminho dos que crêem na sua Ressurreição, para que também nós passemos da morte à vida. Não é coisa de grande vulto crer que Cristo morreu. Isso também o crêem os pagãos, os Judeus e os ímpios. Todos crêem que Cristo morreu. A fé dos cristãos consiste em crer na Ressurreição de Cristo. Consideramos coisa muito importante acreditar que Cristo ressuscitou. Foi então, quando passou, isto é, quando ressuscitou, que Ele quis deixar-Se ver. Quis que acreditássemos n’Ele quando passou, porque foi entregue por causa dos nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação.
(Comentários aos Salmos, Salmo 120, 6: AL 3206; cf. Tratados sobre o Evangelho de João 55, 1: AL 3302)

            Apesar das divergências quanto à data da celebração e quanto à origem do termo Páscoa, é forçoso reconhecer uma grande concordância no que diz respeito ao sentido global da Páscoa. “O conteúdo da celebração é a totalidade da obra da redenção: a encarnação, a paixão, a ressurreição e a glorificação, tudo acontecimentos centrados na Cruz como lugar do triunfo de Cristo”[5]. Isto é, na Páscoa anual celebrava-se o Mistério Pascal de Jesus em toda a sua amplitude.
            Até ao século IV, a Páscoa foi a única festa anual; festa em que se celebrava, tal como na Eucaristia, todo o mistério de Cristo, mistério de morte e ressurreição. Tudo o que nós, hoje, celebramos ao longo de um ano, era então celebrado numa única festa: a Páscoa. Somente a partir do século IV se detecta uma certa tendência a “fragmentar” o Mistério Pascal de Jesus Cristo, o que dará origem ao Ano Litúrgico, com a estrutura que hoje lhe conhecemos.

            A celebração. Quanto à celebração da Páscoa, era constituída por dois momentos: o jejum e a solene e festiva vigília. Os testemunhos mais antigos já apresentavam esta estrutura celebrativa. Como se passou, então, da Vigília ao Tríduo? Sobretudo por influência da liturgia de Jerusalém. De facto, em Jerusalém, lugar onde aconteceram os factos celebrados, no século IV começaram a seguir-se as indicações evangélicas sobre a paixão, morte e ressurreição do Senhor, celebrando cada acontecimento no lugar e dia indicado pelos evangelistas. Chegou até nós o testemunho de uma peregrina da Península Ibérica, Etéria ou Egéria, que no século IV foi em peregrinação à Terra Santa por volta do ano 383. Ora, esta peregrina só relata o que era diferente daquilo que ela conhecia. Por exemplo, quando chega à Vigília Pascal, diz apenas: “As vigílias pascais fazem-se como entre nós” (38, 1: AL 1680). Assim, graças ao seu testemunho, sabemos que foi de Jerusalém que partiu o costume de celebrar com ramos a entrada de Jesus na Cidade Santa, no Domingo de Ramos. Quanto ao Tríduo Pascal, na noite da quinta para a sexta-feira santa os cristãos faziam uma vigília itinerante: à meia-noite subiam ao monte da Ascensão (Inbomon) e daí desciam, com círios acesos e cantando hinos, para o Getsémani, onde se lia a passagem do Evangelho referente à prisão de Jesus. Já na manhã de sexta-feira dirigem-se à Cruz, ao Gólgota. Aí se fazia a adoração da Cruz e a narração da morte de Jesus. No sábado santo, os cristãos reúnem-se para a oração das horas de tércia e sexta, mas já não para a hora de nona, pois estão já ocupados na preparação da Vigília. Terminada a Vigília, já no Domingo de Páscoa de manhã, os cristãos vão ainda à Anastasis (igreja da Ressurreição), onde se lê o Evangelho da ressurreição e se celebra a Eucaristia.
            A referência ao testemunho de Etéria ajuda a perceber como se passou da celebração da Vigília ao Tríduo: por influência desta liturgia de Jerusalém. Os peregrinos que ali iam ficavam impressionados com aquele modo de celebrar a Páscoa – pois como Etéria, só conheciam a Vigília pascal – e, regressando à suas terras, levaram pouco a pouco à adopção do mesmo ritmo celebrativo. É verdade que nas outras partes não tinham os locais, mas adaptaram as celebrações, dando origem ao Tríduo.
            O que levou a prolongar a celebração da Vigília até ao actual Tríduo foi um certo movimento de “dramatização” da Páscoa de Jesus Cristo, acompanhando celebrativamente os dias da sua morte e ressurreição, à imagem do que se fazia em Jerusalém, o lugar onde os acontecimentos se verificaram. Diga-se que este movimento não está isento de dificuldades: se ajuda, pedagogicamente, a aprofundar o sentido de cada momento, também corre o risco de fazer perder o sentido de unidade da celebração do Tríduo.


2. O Tríduo Pascal nos actuais livros litúrgicos

As Normas Gerais do Ano Litúrgico e do Calendário (NGALC) apresentam o Tríduo Pascal da seguinte forma:
18. O sagrado Tríduo da Paixão e Ressurreição do Senhor é o ponto culminante de todo o ano litúrgico, porque a obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus foi realizada por Cristo especialmente no seu mistério pascal, pelo qual, morrendo destruiu a nossa morte e ressuscitando restaurou a vida. A proeminência que na semana tem o domingo tem-na no ano litúrgico a solenidade da Páscoa.
19. O Tríduo Pascal da Paixão e Ressurreição do Senhor inicia-se com a Missa da Ceia do Senhor, tem o seu centro na Vigília Pascal e termina nas Vésperas do Domingo da Ressurreição.


2.1. Missa Vespertina da Ceia do Senhor (Quinta-feira Santa)
            A Missa vespertina da ceia do Senhor assinala o início do Tríduo, na noite de quinta-feira santa. Note-se que a sexta-feira santa é o primeiro dia do Tríduo; a celebração vespertina da quinta-feira pertence já ao dia litúrgico da sexta-feira. Na tradição judaica, o dia começava ao anoitecer (e não ao amanhecer) e a liturgia conservou esse modo de contar o tempo nos Domingos e solenidades. O mesmo acontece com a Vigília Pascal: é já a primeira celebração do Domingo de Páscoa. O Tríduo pascal é um verdadeiro tríduo: sexta-feira, sábado e domingo de Páscoa.
            Os Evangelhos contam-nos que na última tarde, antes da paixão e morte, Jesus reuniu-se com os seus discípulos para uma refeição festiva e de despedida: a última ceia. Foi o próprio Jesus que deu as indicações sobre a preparação do lugar da ceia. Os relatos da paixão e morte têm aí o seu início.
            A celebração tem carácter festivo. A Quaresma termina quando se inicia esta celebração. Por isso, se canta o hino de Glória e tocam campaínhas e sinos. Não se canta ainda o Aleluia porque este é o canto por excelência da ressurreição e se quer reservar para a Vigília Pascal.
            A Missa vespertina da Ceia do Senhor não é nem mais nem menos que uma eucaristia celebrada com toda a dignidade e autenticidade, por se celebrar na noite em que Jesus instituiu a Eucaristia, foi entregue e preso. Contudo, deve ter-se sempre presente que a Eucaristia central, para a qual esta se orienta, é a da Vigília. A importância desta celebração da eucaristia é a sua ligação íntima com o mistério da entrega de Jesus, consumado em sexta-feira santa: esta celebração da quinta-feira santa comemora e antecipa no sacramento eucarístico o gesto de entrega cruento e dramático da Sexta-feira Santa.
“«Nesta Missa [...] a Igreja [...] propõe-se comemorar aquela última Ceia na qual o Senhor Jesus na noite em que ia ser entregue, tendo amado até ao fim os seus que estavam no mundo, ofereceu a Deus Pai o seu Corpo e Sangue sob as espécies do pão e do vinho, os entregou aos Apóstolos para que os tomassem, e lhes mandou, a eles e aos seus sucessores no sacerdócio, que os oferecessem também». Toda a atenção da alma deve estar orientada para os mistérios, que sobretudo nesta Missa são recordados, a saber, a instituição da Eucaristia, a instituição da Ordem sacerdotal e o mandamento do Senhor sobre a caridade fraterna: tudo isto seja explicado na homilia.” (Carta circular n. 44-45: EDREL 3154-3155)
Ora, são estes temas que aparecem quer nas leituras, quer nas orações da missa vespertina da ceia do Senhor. Os textos bíblicos e das orações realçam que Cristo, com a instituição da Eucaristia, nos faz participar na sua Páscoa, na sua Paixão, morte e ressurreição; sublinham a instituição do sacerdócio, sem o qual não há Eucaristia; e sublinham ainda o nexo existente entre a celebração da Eucaristia e a caridade fraterna.


2.2. Celebração da Paixão do Senhor - Sexta-feira Santa
            A sexta-feira santa é um dia inteiramente centrado na Cruz e na morte de Cristo. A sexta-feira santa é um dia alitúrgico: dia em que não se celebra a Eucaristia e que nunca conheceu celebração eucarística. Aliás, na sexta-feira santa e no sábado santo não há celebração de nenhum sacramento, com excepção da Penitência e Unção dos doentes: É estritamente proibido celebrar neste dia qualquer sacramento, excepto os da Penitência e da Unção dos doentes (Carta circular 61: EDREL 3171). A principal celebração da Sexta-feira Santa – a celebração da paixão - é, fundamentalmente, uma ampla Liturgia da Palavra, que culmina com a adoração da Cruz e termina com a Comunhão. É importante ter esta estrutura presente, para percebermos o que é mais importante: a leitura da Palavra de Deus, sobretudo da Paixão, e a adoração da Cruz.

            Ao contrário do que se diz com frequência, este não é o dia de luto pela morte de Cristo. “Neste dia, em que «Cristo, nosso cordeiro pascal, foi imolado», a Igreja, meditando a Paixão do seu Senhor e Esposo e adorando a Cruz, comemora o seu nascimento do lado de Cristo que repousa na Cruz, e intercede pela salvação do mundo inteiro” (Carta circular n. 58: EDREL 3168). Este é o dia da contemplação do amor de Deus pela humanidade e do extremo a que esse mesmo amor levou Jesus Cristo. A morte de Cristo celebra-se sempre na perspectiva da ressurreição: é a morte do Ressuscitado que celebramos, motivo pelo qual falar de luto é inadequado.

            A acção litúrgica da Sexta-Feira da Paixão do Senhor atinge o seu ponto culminante no relato, segundo São João, da Paixão d’Aquele que, como o Servo do Senhor anunciado no livro de Isaías [1ª leitura], Se tornou realmente o único sacerdote, oferecendo-Se a Si mesmo ao Pai (OLM 99). A veneração da Cruz surge como resposta plástica e gestual de toda a assembleia à proclamação da Paixão. Esse gesto não é de adoração de um símbolo de morte, mas adoração de Cristo, vencedor da morte. Neste ponto, a reforma litúrgica introduziu uma mudança: onde antes havia um único modo de apresentação da cruz, descobrindo-a progressivamente, agora figura uma alternativa: fazer a apresentação da cruz já descoberta, partindo do fundo da igreja para o presbitério. “Apresente-se a Cruz à adoração dos fiéis um por um, porque a adoração pessoal da Cruz é um elemento muito importante nesta celebração e só devido a grande afluência do povo se deve usar o rito da adoração feita simultaneamente por todos. A Cruz exposta à adoração deve ser uma só, tal como o requer a verdade do sinal” (Carta circular n. 69: EDREL 3179).
           

2.3. Sábado Santo
            O sábado santo, tal como a sexta-feira santa, é um dia dito “alitúrgico”, isto é, sem celebração da Eucaristia ou de outros sacramentos:      Neste dia a Igreja abstém-se absoluta-mente do sacrifício da Missa. A sagrada Comunhão só pode ser dada como Viático. Não é permitida a celebração do matrimónio nem dos outros sacramentos, excepto os da Penitência e da Unção dos doentes. (Carta circular n. 75: EDREL 3185). As várias horas da oração da Igreja convidam a contemplar o repouso de Cristo no sepulcro, na expectativa da celebração da sua ressurreição. Recomenda-se muito a celebração do Ofício de leitura e das Laudes matutinas com a participação do povo. Onde isso não for possível, prepare-se uma celebração da palavra de Deus ou um exercício de piedade adequado ao mistério deste dia (Carta circular n. 73: EDREL 3183).

            Este é o dia do “grande silêncio”. A leitura patrística do Ofício de Leitura do sábado santo começa assim:Um grande silêncio reina hoje sobre a terra; um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei dorme; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque Deus adormeceu segundo a carne e despertou os que dormiam há século”. O que mais chama a atenção é precisamente o aparente “vazio” deste dia: o silêncio dos sinos, o silêncio dos cânticos, os altares nus, os sacrários abertos e vazios, a ausência de celebrações... “No Sábado Santo, a Igreja permanece junto do sepulcro do Senhor, meditando na sua Paixão e Morte, e na sua descida aos infernos, e esperando na oração e no jejum a sua Ressurreição” (Carta circular n. 73: EDREL 3183).

            A Igreja vive o silêncio do sábado santo, preparando-se assim para a festiva celebração da Vigília Pascal, da ressurreição do Senhor.


2.4. Domingo da Páscoa

2.4.1. Vigília Pascal
Esta vigília é, de certo modo, a mãe de todas as santas vigílias, e na qual vigia todo o mundo [matrem omnium sanctarum vigiliarum in qua totus vigilat mundus] (Santo Agostinho, Sermão 219: Al 3857).

A Vigília Pascal, na noite santa em que o Senhor ressuscitou, é considerada como “a mãe de todas as santas vigílias”, na qual a Igreja espera em vigília a ressurreição de Cristo e a celebra nos sacramentos. Por conseguinte, toda a celebração desta sagrada Vigília deve fazer-se durante a noite, de modo que ou comece depois do anoitecer ou termine antes da aurora do domingo (NGALC 21).

Ao anunciar a Vigília pascal, não se apresente como o último momento do Sábado Santo. Diga-se, antes, que a Vigília pascal se celebra «na noite da Páscoa», e como um único acto de culto. Recomenda-se encarecidamente aos pastores que, na catequese a dar aos fiéis, insistam na importância de se participar em toda a Vigília pascal (Carta circular 95: EDREL 3205).

            Esta é a noite mais importante de todo o Ano Litúrgico. Apesar de tudo, não tem ainda, na consciência popular, o relevo que lhe é devido. O símbolo da luz, a Palavra, a água baptismal e o pão e o vinho eucarísticos, anunciados na Quaresma, alcançam a sua realização nesta noite pascal.
            Não foi por acaso que a renovação litúrgica, mesmo antes do Concílio, começou precisamente com a reforma e renovação da Vigília Pascal, que estava muito descaracterizada. Actualmente, a estrutura da celebração, muito simplificada e expurgada de elementos estranhos, consta de quatro grandes momentos: - Liturgia da Luz; - Liturgia da Palavra; - Liturgia Baptismal; - Liturgia Eucarística.
            Todos estes momentos são importantes, mas nem todos têm a mesma importância. É fundamental que a Vigília decorra em crescendo, orientando-se toda a celebração para o ponto máximo: a Liturgia Eucarística. Deverá ser na Liturgia Eucarística, ponto alto da celebração, que a celebração permitirá a explosão jubilosa de alegria pascal.
            A hora: «Toda a celebração da Vigília pascal se faz de noite, mas de maneira a não começar antes do início da noite e a terminar antes da aurora do domingo». Esta regra deve ser interpretada estritamente. Qualquer abuso ou costume contrário, que vai surgindo por aqui e ali, de celebrar a Vigília pascal nas horas para as quais é costume antecipar as Missas dominicais, deve ser reprovado. (Carta circular 78: EDREL 3188)

1. Liturgia da luz
            A Vigília inicia-se com a bênção do fogo, no qual se acende o Círio Pascal, símbolo de Cristo ressuscitado. O Círio é solenemente apresentado e é ele que guia e ilumina a entrada da comunidade na igreja. Segue-se o Precónio Pascal. De autor desconhecido, é um hino de louvor à noite, a Cristo, ao Círio. É como um lucernário gozoso ou um Prefácio solene da grande Festa Pascal, cheio de lirismo, convidando à alegria e ao louvor, pelo que esta noite significa para a comunidade cristã. É a noite em que Deus tirou os Israelitas da escravidão do Egipto. E, sobretudo, a noite do êxodo e libertação verdadeiros, realizados por Cristo para todos nós. Noite ditosa, iluminada pela Luz que é Cristo. O Círio é o símbolo simples e expressivo da festa pascal, em que todos participam da libertação salvadora da Páscoa.

2. Liturgia da Palavra
            A liturgia da Palavra da Vigília tem um carácter eminentemente baptismal: falam-nos da criação e da promessa da nova criação, figuras do Baptismo; falam-nos do homem novo; apresentam-nos o Baptismo como participação pessoal na paixão, morte e ressurreição de Cristo.
O rito renovado da Vigília tem sete leituras do Antigo Testamento, tomadas dos livros da Lei e dos Profetas, já utilizadas com frequência pela mais antiga tradição tanto oriental como ocidental, e duas do Novo Testamento, tomadas das Cartas dos Apóstolos e do Evangelho. (Carta circular 85: EDREL 3195).

Depois de cada leitura do A.T., há um Salmo e uma oração. Depois da última leitura do A.T. e antes da Epístola, canta-se o Glória. É de toda a conveniência que seja cantado este hino e cantado na totalidade. Durante o canto podem tocar-se campainhas e os sinos.
            Depois da Epístola, canta-se o Aleluia pascal. É necessário dar-lhe um relevo especial, uma vez que esteve ausente da Liturgia na Quaresma. Este é o canto por excelência da Páscoa, que deve, por isso, merecer uma atenção especial. O Missal Romano determina que seja cantado três vezes e em crescendo, para lhe dar maior destaque.

3. Liturgia Baptismal
            Quer haja celebração de baptismos, quer não, a Vigília Pascal tem sempre uma liturgia baptismal. Quando não há baptismos, fica empobrecida, mas a assembleia faz a renovação das promessas baptismais.
A Páscoa de Cristo e nossa é agora celebrada no sacramento. Isto pode ser expresso de maneira mais completa nas igrejas que têm fonte baptismal, e sobretudo quando se realiza a iniciação cristã dos adultos ou, pelo menos, o baptismo de crianças. Mesmo que não haja baptizandos, nas igrejas paroquiais deve fazer-se a bênção da água baptismal. [...] Em seguida tem lugar a renovação das promessas baptismais [...] Os fiéis, de pé e com as velas acesas na mão, respondem às interrogações. Depois são aspergidos com a água: deste modo, gestos e palavras recordam-lhes o Baptismo que receberam. O sacerdote celebrante asperge o povo passando pela nave da igreja, enquanto todos cantam a antífona «Vidi aquam» ou outro cântico de carácter baptismal. (Carta circular 88-89: EDREL 3198-3199)

            Esta é uma celebração toda ela de carácter profundamente baptismal. O nome mais antigo do Baptismo é “iluminação”; ora é com a liturgia da luz que a celebração se inicia. A liturgia da Palavra fala-nos do Baptismo. O terceiro momento da celebração é precisamente uma liturgia baptismal. A liturgia eucarística, se houver baptismos, é a primeira participação dos neófitos na Eucaristia (se são adulto), completando assim a sua iniciação cristã. O Baptismo “é a própria páscoa do cristão (...) O Baptismo é uma libertação paralela à do êxodo e à do Gólgota, cuja eficácia salvífica desdobra e transmite”[6]. A oração de bênção da água da fonte baptismal sublinha esta perspectiva, dizendo: “Desça sobre esta água, Senhor, por vosso Filho, a virtude do Espírito Santo, para que todos, sepultados com Cristo na sua morte pelo Baptismo, com Ele ressuscitem para a vida” (Ritual Romano - Celebração do Baptismo, 54).

4. Liturgia Eucarística
            A Eucaristia é o sacramento fundamental e central na vida da Igreja e na existência cristã. Nela se “actualiza continuamente o mistério pascal de Cristo entre os homens” (Preliminares do Ritual da sagrada Comunhão e culto do mistério eucarístico fora da Missa 23: EDREL 778).
            A Eucaristia é, por excelência, o memorial do Mistério Pascal, como sublinham os documentos do Magistério (cf. SC 6, é apenas um exemplo). Diz o Proémio da IGMR: “Para além da diferença no modo como é oferecido, existe perfeita identidade entre o sacrifício da cruz e a sua renovação sacramental na Missa”. “A Eucaristia é a Páscoa, e a Páscoa é a Eucaristia” (H. Jenny).
            A celebração da Eucaristia é a quarta parte da Vigília e o seu ponto culminante, dado que é, do modo mais pleno, o sacramento pascal, ou seja, memorial do sacrifício da Cruz e presença de Cristo ressuscitado, consumação da iniciação cristã e antegozo da Páscoa eterna. Esta Liturgia eucarística, não deve celebrar-se apressadamente (Carta circular 90-91: EDREL 3200-3201).

2.4.2. Domingo de Páscoa da Ressurreição

A Missa do dia de Páscoa deve ser celebrada com grande solenidade. Em vez do acto penitencial, é conveniente fazer hoje a aspersão com a água benzida durante a celebração da Vigília. Durante a aspersão deve cantar-se a antífona «Vidi aquam» ou outro cântico de carácter baptismal. (Carta circular 97: EDREL 3207)

Conserve-se, onde está em vigor, ou restaure-se onde for oportuno, a tradição de celebrar as Vésperas baptismais do dia de Páscoa, durante as quais, ao canto dos salmos, se vai em procissão até à fonte baptismal. (Carta circular 98: EDREL 3208)

O círio pascal, colocado junto do ambão ou perto do altar, deve acender-se ao menos em todas as celebrações litúrgicas mais solenes deste tempo, tanto na Missa como em Laudes e Vésperas, até ao domingo de Pentecostes. Terminado este tempo, o círio deve ser conservado com a devida reverência no baptistério, para que, na celebração do Baptismo, se acenda na sua chama a vela dos baptizados. Na celebração das exéquias o círio pascal deve ser colocado junto do féretro, para indicar que a morte é para o cristão a sua verdadeira Páscoa. Fora do tempo da Páscoa, o círio pascal nem deve acender-se nem conservar-se no presbitério. (Carta circular 99: EDREL 3209)


3. O Tempo Pascal
O Tríduo Pascal é o centro do Ano Litúrgico. A intensidade do que viveu e celebrou não pode, por isso, reduzir-se a esses dias. Daí que, desde muito cedo, antes ainda se existir uma Quaresma de preparação, a Igreja criou um tempo festivo que prolonga a festas pascais por cinquenta dias. “Os cinquenta dias que se prolongam desde o Domingo da Ressurreição até ao Domingo do Pentecostes celebram-se na alegria e exultação como um único dia de festa, melhor, como «um grande Domingo». São os dias em que de modo especial se canta o Aleluia” (22). Os Domingos deste tempo são chamados Domingo II, III, IV, V, VI e VII da Páscoa (23). Na cinquentena pascal são de destacar: a semana que se seque ao Domingo da Ressurreição, que constitui a Oitava da Páscoa (24); no quadragésimo dia – ou o Domingo VII da Páscoa – celebra-se a Ascensão do Senhor (25); o último dia da cinquentena pascal é o Domingo do Pentecostes (23). Convém sublinhar que Ascensão e Pentecostes não são duas festas autónomas, mas sim parte integrante do Tempo Pascal, como duas dimensões fundamentais do mistério pascal.
“Até ao terceiro Domingo da Páscoa, as leituras do Evangelho relatam as aparições de Cristo ressuscitado. As leituras do Bom Pastor estão atribuídas ao quarto Domingo da Páscoa. Nos Domingos quinto, sexto e sétimo da Páscoa há passagens do discurso e da oração do Senhor depois da última Ceia. A primeira leitura toma-se dos Actos dos Apóstolos, no ciclo dos três anos (...) Como leitura apostólica, lê-se no ano A a primeira Epístola de São Pedro, no ano B a primeira Epístola de São João, no ano C o Apocalipse” (OLM 100).

O Tempo da Páscoa deve ser vivido “como um único dia de festa” ou como «um grande Domingo»: é fundamental recuperar a unidade deste tempo litúrgico. A Ascensão e o Pentecostes são parte integrante do Tempo da Páscoa, como dimensões fundamentais do Mistério Pascal. Infelizmente, na sensibilidade popular aparece com maior unidade a Quaresma que a Páscoa.



4. A Quaresma

            A Quaresma é um período de cerca de 40 dias, que se destina a preparar-nos para a celebração e vivência da Páscoa. “O Tempo da Quaresma destina-se a preparar a celebração da Páscoa: a liturgia quaresmal prepara para a celebração do mistério pascal tanto os catecúmenos, através dos diversos graus da iniciação cristã, como os fiéis, por meio da recordação do Baptismo e das práticas de penitência” (27).
            Assim, a Quaresma existe por causa da Páscoa e tem uma dupla característica: baptismal e penitêncial. Contudo, os sinais exteriores da Quaresma apontam sobretudo para a dimensão penitêncial: a cor roxa, a ausência do Aleluia e do hino de Glória, a ausência de ornamentação do altar... Porém, essa dimensão penitencial não se compreende sem a dimensão baptismal: o que se pretende com a prática penitencial é recuperar a vida baptismal que recebemos. “Pelos sacramentos da iniciação cristã, o homem recebe a vida nova de Cristo. Ora, esta vida, nós trazemo-la «em vasos de barro» (2 Cor 4, 7)” (Catecismo 1420). Esta vida nova está, pois, sujeita à nossa fragilidade e é, muitas vezes, marcada pelo pecado, pela infidelidade. Usando uma imagem: a veste branca, que recebemos no Baptismo, símbolo da vida nova, vai ficando suja com a passar do tempo, não por qualquer fatalidade, mas porque nem sempre a sabemos preservar branca e limpa. É por isso que a Quaresma une estes dois aspectos, mesmo quando, numa comunidade, não há catecúmenos que se preparam para o Baptismo.
            As origens da Quaresma não são claras. O seu elemento mais antigo é o jejum. Historicamente, a Quaresma nasce da conjugação de 3 itinerários distintos:
- Por um lado, uma vez que a Vigília Pascal era a grande data da celebração da iniciação cristã, a noite baptismal por excelência, o período que a antecedia era um tempo de preparação intensa dos que iam ser baptizados. Daí o carácter baptismal deste tempo.
- Por outro lado, esse mesmo período era também o da preparação dos penitentes para a reconciliação, na manhã de quinta-feira santa.
- Por fim, dada a importância das celebrações pascais, sentiu-se a necessidade de proporcionar à comunidade cristã um tempo de preparação, marcado pelos dois itinerários já indicados - baptismal e penitencial. O modelo desse tempo vai-se então buscar à passagem de Cristo pelo deserto, durante 40 dias. Daí que esse texto evangélico se tenha fixado para o primeiro domingo da Quaresma
            Foi, pois, no decurso do século IV que a Quaresma, como período de 40 dias de jejum de preparação para a Páscoa, se formou. Em Roma, ainda em meados do século IV, o jejum de preparação para a Páscoa era de apenas 3 semanas; nos 3 domingos liam-se as perícopas joaninas da Samaritana, da cura do cego de nascença e da ressurreição de Lázaro (os grandes textos evangélicos da preparação para o baptismo). Foi no período entre 354 e 384 que, em Roma, se chegou a um tempo de 40 dias de preparação para a Páscoa, imitando Jesus na sua estadia de 40 dias no deserto.

            Todo o programa da Quaresma se pode sintetizar numa palavra: conversão! Os catecúmenos são desafiados a aprofundar a sua conversão a Cristo; os fiéis já baptizados são chamados a tomar consciência de que a conversão a Cristo é tarefa de toda uma vida (e que não basta dizer que se é baptizado). A pregação de Jesus começa, precisamente, com um convite á conversão: “Arrependei-vos” (Mc 1, 15). Já no rito de imposição das cinzas, no início da Quaresma, essa era também a forma como era apresentado este tempo litúrgico, através da exortação: “Convertei-vos e acreditai no Evangelho”. A conversão implica sempre esforço pessoal. A liturgia caracteriza esse esforço como luta contra o mal, como combate, como mortificação.

            Quarenta dias
            A Bíblia associa este número a períodos de espera, de preparação de algo importante, de humilhação, de esforço, de penitência e de luta. Só no fim dos 40 dias ou anos há o encontro, o prémio, o dom, a vitória. A referência ao número 40 remete pois para um itinerário de empenhamento e esforço, que conduz a uma nova situação.
            Abundam as referências bíblicas ao número 40. O facto de Jesus se ter retirado para o deserto durante 40 dias recorda-nos os 40 anos de peregrinação de Israel pelo deserto, a caminho da terra prometida; tempo de provação e dificuldade, mas também de experiência da misericórdia de Deus; tempo de provação e murmuração contra o Senhor, mas também de Aliança. Os 40 dias no deserto recordam-nos os 40 dias que Moisés esteve no Sinai, em jejum e na presença do Senhor. Os 40 dias que Elias caminhou pelo deserto, em direcção ao monte Horeb, onde encontrou o Senhor; caminhada na qual o profeta sentiu fome e cedeu ao cansaço e ao desânimo, mas também na qual foi fortalecido pelo alimento que Deus lhe enviou e animado a continuar a marcha. Os 40 dias durante os quais o gigante Golias, o filisteu, desafiou Israel, até ser derrotado e morto por David. Ainda os 40 dias de penitência dos ninivitas, depois da pregação de Jonas.

Os meios para a conversão
            Em que consiste a “penitência quaresmal” di-lo a Colecta do III Domingo da Quaresma:
“Deus, Pai de misericórdia e fonte de toda a bondade,
que nos fizestes encontrar no jejum, na oração e no amor fraterno
os remédios do pecado,
olhai benigno para a confissão da nossa humildade...”

            Os 3 grandes meios que este “tempo favorável” nos apresenta como caminho de penitência e conversão são, pois: o jejum, a oração e o amor fraterno. Esta trilogia apareceu-nos logo no Evangelho da Quarta-feira de Cinzas (Mt 6, 1-6.16-18): “... quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti [..] Quando rezardes, não sejais como os hipócritas [...] Quando jejuardes, não tomeis um ar sombrio...”
            Mas também nos relatos da tentações de Jesus, do Domingo I da Quaresma (Mt 4, 1-11; Mc 1, 12-15; Lc 4, 1-13) encontramos a referência ao jejum, bem como a referência ao deserto como lugar do encontro intenso e íntimo com Deus e, por isso, como lugar da oração; não aparece explicitamente o terceiro elemento, a caridade, mas encontramo-la nas leituras da missa ao longo de todo o tempo quaresmal. Por isso, partimos precisamente do texto das tentações de Jesus, Evangelho que ouvimos proclamar no primeiro Domingo da Quaresma. Nesse texto são-nos apresentadas, de forma sintética, as características maiores deste tempo litúrgico.

            Oração. A Quaresma é um tempo de oração mais intensa, mas também de revisão de vida, de “retiro”. Em 1983, o então Cardeal J. Ratzinger (hoje, Papa Bento XVI), quando orientou os exercícios espirituais ao Papa João Paulo II e à Cúria Romana, afirmou: “os 40 dias da Quaresma são já, em si mesmos, os grandes exercícios espirituais que a Igreja nos oferece ano após ano”. A Quaresma é o “tempo favorável” para esse mais intenso encontro com Deus. Os 40 dias são-nos propostos como itinerário intenso de encontro com Deus, de conversão, de confronto da nossa vida com a Palavra de Deus.
            A Palavra de Deus. A escuta e meditação da Palavra é elemento fundamental da vivência deste tempo litúrgico da Quaresma. Neste tempo, a Palavra de Deus apresenta-nos Jesus Cristo como o protagonista da caminhada quaresmal que iniciámos. Jesus, além de protagonista, aparece-nos, neste tempo, como o mestre, aquele que nos guia nesta caminhada quaresmal. Isso é particularmente evidente nas leituras dos dias feriais, que nos apresentam os temas fundamentais da vida cristã. A conversão surge como o grande apelo feito a cada cristão, conversão que Jesus concretiza nos caminhos que nos aponta, em ordem a um seguimento mais radical. Jesus aparece-nos, na Quaresma, por fim, como o modelo a imitar: assim como Jesus vai para o deserto 40 dias e vence as tentações, também nós somos desafiados a fazer deste tempo a imitação de Jesus. Como diz o prefácio da missa do primeiro Domingo da Quaresma, Jesus Cristo “triunfando das insídias da antiga serpente, ensinou-nos a vencer as tentações do pecado, para que, celebrando dignamente o mistério pascal, passemos um dia à Páscoa eterna”.
            O jejum. O jejum está conotado com a penitência. É sinal de arrependimento, de desejo de conversão. Jejuar é privar-se do que é necessário, é reconhecer a dependência daquele que dá a bebida e a comida, isto é, de Deus. O deserto, os 40 dias ou 40 anos e o jejum remetem, assim, antes de mais, para a atitude de arrependimento, conversão, penitência.      O mais antigo elemento da Quaresma é o jejum. O Papa João Paulo II afirmou:
“Pode dizer-se que Cristo introduziu a tradição do jejum de quarenta dias no ano litúrgico da Igreja, porque Ele próprio jejuou quarenta dias e quarenta noites antes de começar a ensinar. Com este jejum de quarenta dias a Igreja é, em certo sentido, chamada, cada ano, a seguir o seu Mestre e Senhor, se quiser pregar eficazmente o seu Evangelho" (João Paulo II, Audiência Geral de 28/2/1979).
O jejum faz parte da Quaresma! A abstinência de carne é apenas uma forma mitigada de jejum. É claro que hoje, falar de jejum não recolhe muita simpatia. Contudo, sem absolutizarmos tal prática, convém termos consciência da importância de renunciar a algo, de que o alimento é apenas um sinal sensível. S. Leão Magno di-lo de forma clara: o jejum “não consiste só na abstinência dos alimentos, mas também e sobretudo em abster-se do pecado”. São João Crisóstomo utiliza uma linguagem pradoxal para dizer isso: “Como é possível que jejuando, não se jejue? É possível se, renunciando ao alimento habitual, não se renuncia ao pecado. Como é possível que, não jejuando, se jejue? É possível se se toma alimento, renunciando ao pecado. Este jejum é bem melhor que o outro; e não apenas melhor, mas ainda mais fácil” (cit. por A. Nocent, Célébrer Jesus-Christ. L'année liturgique 3. Carême, Paris 1976, 46).
Amor fraterno. Por fim, um terceiro meio para a conversão é o amor fraterno, a caridade. Na tradição cristã o termo mais usado era o da esmola. E sobre este meio não me pretendo alongar. Não há oração verdadeira, expressão do amor a Deus, sem sincera atenção aos outros. O amor a Deus e ao próximo são inseparáveis. Em cada ano, cada Diocese determina o destino a dar à “renúncia quaresmal”, o que mostra o quanto o jejum, aquilo a que se renuncia, está também ligado ao amor fraterno, à ajuda aos mais necessitados. Jejuar é também renunciar a alguma coisa para poder ajudar os outros.

Os três meios são inseparáveis. Os três meios por excelência para a conversão quaresmal, para nos prepararmos convenientemente para a celebração da Páscoa – a oração e a escuta mais intensa da Palavra de Deus, o jejum e o amor fraterno – são inseparáveis. Não se trata de escolher um deles, mas de os abraçar em conjunto. Di-lo claramente São Pedro Crisólogo, num sermão (Ofício de Leitura da terça-feira da III semana da Quaresma):
            Há três coisas, irmãos, pelas quais se confirma a fé, se fortalece a devoção e se mantém a virtude: a oração, o jejum e a misericórdia. O que pede a oração, alcança-o o jejum e recebe-o a misericórdia. Oração, jejum e misericórdia: três coisas que são uma só e se vivificam mutuamente.
            O jejum é a alma da oração, e a misericórdia é a vida do jejum. Ninguém tente dividi-las, porque são inseparáveis. Quem pratica apenas uma das três, ou não as pratica todas simultaneamente, na realidade não pratica nenhuma delas. Portanto, quem ora, jejue; e quem jejua, pratique a misericórdia. Quem deseja ser atendido nas suas orações, atenda as súplicas de quem lhe pede, pois aquele que não fecha os seus ouvidos às súplicas alheias, abre os ouvidos de Deus às suas próprias súplicas. [...]
            Façamos, portanto, destas três virtudes – oração, jejum, misericórdia – uma única força mediadora junto de Deus em nosso favor; sejam para nós uma única defesa, uma única operação sob três formas distintas.



[1]    M. QUESNEL,  Jesus Cristo, Instituto Piaget, Lisboa  1995, 11.
[2]    H.U. VON BALTHASAR, Pâques, le Mystére, Cerf, Paris  1996, 24.
[3]    P. WINTER, cit. por MATÍN DESCALZO, Vida e Mistério de Jesus de Nazaré 3. A cruz e a glória, Ed. Missões, Cucujães  1994, 14.
[4]    R. CANTALAMESSA, La Pasqua nella Chiesa antica, (Traditio Christiana 3) SEI, Torino 1978, XIII.
[5]    Th.J. TALLEY, Les origines de l’Année Liturgique, Cerf, Paris  1990, 19.
[6]    C. ROCCHETTA, Os Sacramentos da Fé - Ensaio de Teologia bíblica sobre os sacramentos como “maravilhas da salvação” no tempo da Igreja, EP, São Paulo  1991, 243.

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