Construtivismo, Realidade E A Sala De Aula
INTRODUÇÃO
O presente artigo, fruto de reflexões sobre dados coletados em recente pesquisa a respeito do discurso construtivista e da realidade da sala de aula, traz novamente à tona antigas questões que envolvem o dia-a-dia de uma sala de aula e as funções do docente nela atuante. Muito embora o objetivo não seja encontrar soluções mágicas nem demonstrar resultados sensacionalistas, os dados sobre os quais as reflexões se fundamentam pretendem, isto sim, contribuir para que as discussões continuem. Ainda é muito necessário refletir sobre o papel do professor na sala de aula e sobre todos os aspectos que envolvem esse cenário, e nesta reflexão o objetivo maior deve ser a compreensão cada vez maio da complexidade do ambiente escolar e o aluno e o professor ainda são peças fundamentais.
2. O PROFESSOR NO CENÁRIO ESCOLAR ATUAL
A questão do cotidiano escolar é, sem dúvida, uma das mais complexas situações do universo pedagógico sistematizado. As dificuldades encontradas pelo professor no trato e resolução dos problemas referentes ao relacionamento da díade aluno x conhecimento estão continuamente presentes nas discussões entre os profissionais da área.
O ensino escolar sempre teve, e ainda tem papel relevante na promoção individual/social; assim sendo, de tempos em tempos impõe-se uma reavaliação dos objetivos, conteúdos, metodologia e principalmente do papel do professor, pois o que se conhece não mais satisfaz.
Entre as questões sempre presentes, é possível acrescentar outras, como: afinal, o que de fato mudou: a escola, o aluno ou o professor? Por que o modelo de professor tão conhecido por todos nós não serve mais? Onde realmente deveria processar-se a mudança? Quais são as verdadeiras competências de um professor, dito atualizado, moderno? O que é esperado desse profissional? Essas questões não têm respostas rápidas nem fáceis.
Atualmente, fala-se muito em globalização, interdisciplinaridade, educação planetária, multidisciplinaridade etc. No entanto, a falta de contato entre o conhecimento escolar e as realidades sociais permanece uma constante, tal a ambigüidade, a falta de clareza que envolve o próprio papel da escola enquanto instituição partícipe da engrenagem social.
Em vista dessa situação não digerida, não internalizada mentalmente, e por isso mesmo também sem ressonância no comportamento dos envolvidos, a grande maioria dos professores, apesar do desconforto sentido, da insegurança (devido às críticas recebidas), volta sempre às antigas formas e fórmulas de trabalho no dia-a-dia da sala de aula. Como esperar algo diferente, a adoção de uma nova postura profissional, se esta não foi suficientemente entendida? A falta de uma identidade teórica, enquanto porto seguro, no desenvolvimento das atividades diárias, deixa os docentes à mercê de modismos que apenas encaminham para novas frustrações, tanto para eles próprios quanto para a comunidade.
Em recente pesquisa, quando perguntados sobre as mais evidentes dificuldades percebidas em seus alunos 49% dos docentes disseram ser a de incorporação de conhecimento, ou seja, os alunos apresentavam dificuldades para aprender. Sobre as atividades mais frequentemente dadas aos alunos, aparecem, pela ordem: produção e interpretação de textos (43%); discussão de assuntos veiculados pela mídia (33%); outras atividades do tipo armem e efetuem, completem as frases e resoluções de problemas matemáticos (15,5%). Observe-se que tais atividades exigem pouco envolvimento do docente, ou seja, a “tarefa” é distribuída, em seguida são dadas algumas rápidas explicações, e espera-se o aluno terminar para depois, efetuar a correção coletiva. Nessa situação, evidencia-se, pelo menos para nós, uma grande dificuldade, por parte do professor, em construir e reconstruir uma concepção própria do processo ensino/aprendizagem, em razão dos dados e resultados obtidos no dia-a-dia. Silva (1999) diz sobre isso:
Na sala de aula há necessidade de uma construção recíproca dos atores do processo:
o aluno agiria em favor da construção e reelaboração do conhecimento e o professor
estabeleceria com sua atitude um caminhar a dois (p. 99).
Outra situação configurada e de certa forma surpreendente foi a que resultou das respostas dadas pelos professores quando questionados sobre o construtivismo: 38,5% considerarem-se construtivistas, no entanto, 33,5% não souberam responder sobre as competências de um professor assim classificado; 48,5% afirmaram considerar difícil a aplicação dessa teoria, e 27,5% responderam que a principal função de um docente construtivista seria estimular o aluno, embora não deixassem claro o que entendiam por isso.
Interessante observar que esses dados corroboram com o que foi dito anteriormente sobre a fraca formação teórica dos professores. Se o construtivismo é uma concepção teórica essencialmente preocupada com a aquisição, acomodação e exteriorização do conhecimento, ou seja, com o processo de aprendizagem, faz sentido falar em professor construtivista? Quem “constrói” o próprio conhecimento é o aluno; ao professor compete criar o ambiente, as circunstâncias propícias para que essa construção se efetive. Andrade (1995) comenta:
A professora precisa saber quem são seus alunos. Conhecer o processo de desenvol-
vimento em seus aspectos cognitivo, afetivo-social e psicomotor, para ter uma visão
integral das necessidades e possibilidades da faixa etária é o primeiro passo... de
posse desses dados, a professora terá competência para selecionar, com critérios e
criatividade atividades e tarefas que tenham real significado e objetivo claro de de-
senvolvimento para sua turma (In Goulart, p. 35).
3. AS EVIDÊNCIAS CONCRETAS DA SALA DE AULA
A análise dos cadernos de alunos, que constituiu a segunda parte da pesquisa realizada, veio, na verdade, confirmar nossa intuição sobre a divergência existente entre o discurso docente e o fazer cotidiano dos alunos na escola.
Quando falamos em divergência, ou seja, em não convergência do propalado e do concreto no dia-a-dia, não temos a intenção de criticar, mas tão somente refletir sobre os argumentos apresentados pelos docentes e sobre o que de fato o comportamento deles evidencia.
No primeiro momento, os cadernos apresentaram-se visualmente bastante bons, demonstrando a preocupação dos professores nesse sentido.
A confrontação do discurso docente com as atividades encontradas nos cadernos, independentemente da área de conhecimento, colocou em xeque a relação professor-aluno-conhecimento, deixando transparecer alguns aspectos bastante interessantes e merecedores de uma análise mais detalhada, que, no entanto, não é o objetivo neste momento. Entre as principais atividades e/ou exercícios presentes nos cadernos, ainda se encontraram com exagerada freqüência os dos tipos completar frases; ligar desenho ao nome; arme e efetue; questionários de interpretação; formação de frases a parti de palavras dadas; produção de textos (após sessões de vídeo, histórias lidas e comentadas); ilustração de frases e textos e problemas matemáticos.
O que isso vem demonstrar? Em nossa interpretação, a conclusão seria que, muito embora se realizem reuniões, encontros para discussões, cursos de aperfeiçoamento, etc.; o dia-a-dia na escola permanece igual ao que era há muitos anos. O professor não muda no interior da sala de aula, nem tampouco a sua relação com o conhecimento e o aluno. A cultura da docência, o modelo de professor de várias décadas passadas, ainda é o que marca presença na sala de aula.
A análise dos cadernos dos alunos revelou também uma alarmante negligência quanto ao que fica registrado neles, ou seja, raros cadernos (40%) continham efetiva supervisão por parte do docente. Na maioria dos cadernos, aparecem muitas palavras grafadas erroneamente, exercícios cujos resultados não estavam corretos e que não receberam nenhuma anotação por parte do professor. Essas deficiências poderiam ser atribuídas tão somente ao grande número de alunos na sala? Parece-nos que não, uma vez que não é a quantidade de exercícios reiterativos que garantirá a aprendizagem dos alunos.
Talvez a falta de uma perspectiva profissional da ação e das competências docentes possa esclarecer o que vem ocorrendo no interior da sala de aula. A descaracterização do papel do professor e a falta de modelos sérios a seguir contribuem para o aligeiramento, a superficialidade das atividades de ensino. A atemporal idade, no sentido de constante "inovações", modismos e cópias do que o colega está fazendo, sem a base de uma estrutura cognitivo-emocional, acaba por levar o professor a não pensar, a não refletir de modo mais centrado no real papel que lhe compete. Sobre essa questão, Arroyo (2000) alerta com muita propriedade:
O direito à educação nunca será garantido por um clube de amigos e amigas da
cultura, de animais de estimação ameaçados, de crianças de rua, e agora a mídia
e os governos lançam a campanha amigos da escola! mais um capítulo de nossa
longa história, de sua descaracterização. A educação escolar tratada como uma
terra vadia, sem cercas, facilmente invadida por aventureiros. Qualquer um enten-
de, palpita sobre a escola (p. 22).
Essas preocupações do autor fazem refletir e levantam questionamentos como: quando os professores retomarão, de verde as rédeas do ensino?
Outro aspecto interessante de ser analisado, o qual se encontra firmemente incorporado ao imaginário docente, é a necessidade de vinculação das atividades, do conhecimento ao cotidiano vivenciado pelo aluno. Será isso, de fato, tão necessário assim? Será que se trata de um procedimento tão elementar, tão fácil assim para o professor? Os professores foram ou estão sendo formados dentro desses novos conceitos? Se não, como exigir deles uma prática que nunca vivenciaram? Por que colocar os professores dentro de uma roda-viva de teorias novidadeiras e de conceitos "modernos", que apenas lhes desvanecem a identidade, deixando-os inseguros e com baixa estima enquanto profissionais? Evidentemente, não estamos advogando a estagnação profissional; porém acreditamos que um profissional bem formado, seguro do papel a ser por ele desempenhado, reconhecido pelas tentativas que faz para acertar, poderá obter resultado melhores e mais significativos. É novamente Arroyo (2000) quem adverte:
As políticas de formação e de currículo é, sobretudo, a imagem do professor (a)
em que se justificam, perderam a referência ao passado, à memória, à história,
como se ser professor (a) fosse um cata-vento que gira à mercê da última von-
tade política e da última demanda tecnológica... que se julgam no direito de nos
dizer o que não somos e o que devemos fazer, de definir nosso perfil, de redefi-
nir nosso perfil social, nossos saberes e competências... através de um simples
decreto (p. 24).
Muito embora já encontremos em Dewey e Bruner a preocupação em delegar ao professor o efetivo e eficaz encaminhamento do processo de ensino, através de variadas habilidades e competências e de uma postura profissional inquestionável, até hoje não foi possível reencontrar esse caminho, tal a miscelânea teórica construída em torno da função docente.
Os motivos que deixam, ainda nos dias atuais, a competência docente tão vulnerável em sua definição constituem uma situação complexa demais para ser resolvida através de raras e sempre repetida tentativas de “atualização” dos mestres. Entendemos que o real problema se encontre na base de sua formação.
Parece-nos que começar a refletir sobre o próprio conceito de infância e de aprendizagem poderia vir a ser um bom e viável início, para, daí então, retomar a discussão sobre o papel do professor, e do adulto em geral, no desenvolvimento da criança.
Outro aspecto interessante a ser considerado, o qual também permeia o imaginário docente, é o receio de ser classificado como "tradicional", numa clara demonstração do valor pejorativo que acompanha essa palavra. Como ninguém quer ser chamado de "tradicional", há uma corrida pela adoção de atividades e conteúdos ditos modernos, sem, no entanto, uma reflexão sobre o significado e a contribuição real dessas atividades para a formação do educando.
É necessário que o professor tenha sempre presente que, para uma prática diária considerada atual, moderna, ele precisa romper com antigas formas de organização (tanto social quanto escolar), adotar novas tecnologias e com elas, novos paradigmas. Ou seja, é necessário acoplar as práticas educativas às condições que emergem, que desabrocham das vivências sociais em todos os seus segmentos socioculturais. Como concretizar isso? Vale refletir sobre o que diz Kant:
O estudante não deve aprender pensamentos; deve aprender a pensar. Não se deve
transportá-lo, mas guiá-lo se quisermos que no futuro seja capaz de dirigir-se por
se por seus próprios meios (In Gusdorf, 1987, p. 126).
Existe algo mais construtivista do que isso?
Retornando à questão da distância entre o que diz o professor e o que realmente acontece no interior da sala de aula, salta aos olhos a necessidade de uma mudança conceitual, inclusive de questionamentos sobre o que de fato seria um professor construtivista, bem como sobre a orientação que dará a sua postura (se filosófica, metodológica, etc.). Até porque, a concepção construtivista não é identificável em todo e qualquer momento da sala, mas na organização, propósitos e postura do professor. Não é na seleção deste ou daquele instrumento/material/conteúdo que o professor assume uma postura construtivista, mas, sim, no encaminhamento das etapas que envolvem e desencadeiam o raciocínio lógico e concreto do aluno. Ou seja, são os objetivos que ele consegue alcançar por meio das atividades desenvolvidas que o farão merecer, ou não, a classificação de construtivista.
A fim de que ocorra isso, é sempre válido relembrar que um consistente quadro teórico referencial é fundamental para dotar o professor de equilíbrio e segurança no encaminhamento de suas propostas de trabalho diário. Saber o que faz e porque o faz é sempre um bom começo. Ou, como diz Puig: "Compreender supõe, antes de tudo, perguntar-se algo e com isso abrir espaço para novas significações e sentidos".
Com uma postura assim, tendo a coragem e a humildade de refletir sobre os resultados de seu trabalho diário, com o propósito de ajudar o educando na conquista de seu espaço social, o professor conseguirá que as dificuldades enfrentadas e os desgastes sofridos tenham valido a pena.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Rosa Maria C. de. In Goulart, Íris. (org.) A Educação na Perspectiva Construtivista. Petrópolis - RJ: Vozes, 1995.
ARROYO, Miguel. Ofício de Mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000.
GUSDORF, Georges. Professores para Que? São Paulo: Martins Fontes, 1987.
RIOS, Terezinha A. Compreender e Ensinar. São Paulo: Cortez, 2001.
SILVA, Elzamir G.; TUNES, Elizabeth. Abolindo Mocinhos e Bandidos. Brasília: UNB, 1999.
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